
Jogo de palavras
As duas palavras tem sentidos diferentes e descrevem conjuntos de coisas diferentes (embora em alguns casos possam ser próximos) - até aí algo fácil de verificar. Para começar a reflexão, trarei dois significados de cada do site Dicionário Informal, pois as definições de lá são apresentadas de forma simples e estão bem próximas ao senso comum - embora eu não goste de seguir senso comum, mas vejo que para linguagem se torna inevitável. Não trarei todas para não tornar o texto desnecessariamente grande.
Liberdade
- É o direito de fazer o que quer
- Ato de possuir qualquer que seja uma escolha, decidir a própria vida, ter o poder de se expressar e fazer o que bem entender.
Libertinagem
- Libertinagem é o uso da liberdade sem o bom senso, parece liberdade, mas é ao contrário por auto se contrariar.
- É todo ato em que o indivíduo pratica em sua ação descontroladamente sem senso crítico da realidade.
Tendo as definições em mente, chegamos rapidamente a um problema: não é raro ver acusações de libertinagem a atos que não consistem libertinagem, pois não vão além do limite da liberdade de expressão. E o exemplo do qual quero discorrer para continuar a reflexão cabe como uma luva aqui: Charlie Hebdo.
Charlie Hebdo
Quem?
Para que não souber - difícil mas possível - Charlie Hebdo é um jornal satírico francês, que sofreu um terrível atentado terrorista em 7 de janeiro de 2015. O jornal ficou bem conhecido por charges polêmicas, que continham um humor tido como pesado por muitos.
Dentre elas charges sobre Maomé, o que é apontado como a "justificativa" dos ataques terroristas, pois um dos dogmas centrais do islamismo é que o profeta Maomé não pode ser retratado nunca, para nenhum fim - nem mesmo adoração, e obviamente muito menos sátira.
Je Suiz Charlie
Após o atentado, o slogan "Je Suiz Charlie" - "Eu sou Charlie" em francês - começou a ser usado por defensores de liberdade de expressão, e se espalhou rapidamente pela internet.
Na mesma velocidade se espalharam críticas ao jornal - principalmente de pessoas ofendidas por seu humor "pesado" - slogans contrários.
E no meio disso tudo entra o velho "liberdade vs libertinagem".
Charlie, liberdade de expressão e libertinagem
Você já deve imagina como as duas partes se conectam, não?
Mas vou deixar um pouco mais claro com essas duas charges do jornal:
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Maomé beijando cartunista com o texto “o amor, mais forte do que o ódio” |
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Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) em um menáge a trois gay |
O conteúdo do jornal é acusado de "libertinagem de expressão" por muitas pessoas, pois segundo elas ele extrapola o limite ao desrespeitar crenças alheias.
Há vários discursos de pessoas dizendo que o jornal exagerou e teve uma parcela de culpa pelo atentado ocorrido. Mas que isso: há os que consideram correta a atitude dos terroristas, em geral fanáticos religiosos com máscara de moderados.
Tanto os moderados que tentavam culpar o jornal, quanto os fanáticos que aplaudiam os terroristas tem duas coisas em comum: consideram errado alguém avacalhar o "sagrado" e querem impor um estilo "politicamente correto" disfarçado de respeito à crenças alheias - não só ao jornal, mas a toda sociedade.
Minhas observações
Uma máscara para a hipocrisia
Enquanto pensava sobre a questão de crenças merecerem ou não respeito, lembrei de um exemplo clássico - mas que se mostra extremamente importante na discussão.
Suponhamos por um momento que a sentença seja verdadeira, que ideias mereçam respeito.
Apesar de chegar muito perto da falácia do apelo à hipocrisia, uma das primeiras coisas que nos perguntaremos é se aqueles que defendem "respeito às crenças dos outros" praticam o que pregam, se realmente respeitam as crenças alheias.
Eu já tinha a resposta na ponta da língua, porém recebi um complemento em uma imagem da página Diabo Real que a deixou ainda melhor:
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Imagem de Diabo Real. Clique na imagem para ir na postagem original. |
A grande maioria dos defensores do "respeito às crenças alheias" o usa de um self-service, pregando o conjunto todo mas só ponde em pra´tica o que os convém. Pregam que não devemos avacalhar Maomé, Jeová, Jesus e o Espírito Santo - mas na hora de parar de desrespeitar o Hinduísmo não comendo carne de um animal sagrado nessa crença o lema já não vale né?
Obviamente isso não derruba ideia de "respeito às crenças alheias" (tentar fazê-lo dessa forma cairia no apelo à hipocrisia), apenas demonstra que, em geral, aqueles que defendem essa ideia vestem uma máscara de "respeito" para tentar cobrir a própria hipocrisia.
Implicações do "respeito à crenças alheias"
Agora sim uma desconstrução ao "respeito às crenças alheias. Prepara que é hora de filosofar.
Eu tinha dito acima para supormos que ideias realmente mereçam respeito, porém paremos para pensar: elas merecem.
Vejo três possibilidades:
- todas as ideias merecerem respeito
- algumas ideias merecerem respeito e outras não
- nenhuma ideia merecer respeito
Todas merecerem
Essa é uma possibilidade simplesmente absurda.
Escravidão, superioridade étnica, superioridade de gênero, dentre outros absurdos da história humana deveriam ser respeitados se seguíssemos essa ideia. Seguindo-a deveríamos respeitar todo tipo discriminação, de discurso odioso, de preconceito, enfim, todos os males apoiados em palavras - inclusive os que nos afetem.
É um completo absurdo defender isso, sendo impossível fazê-lo de forma intelectualmente honesta.
Apenas algumas merecerem
Imediatamente pergunto: qual é o critério que se usaria para separar as que merecem das que não merecem?
Origem? Efeitos práticos? Análises subjetivas?
Enfim, um critério para definir quais ideias sejam dignas ou não de respeito pode ser algo até mesmo impossível, pois sempre há como quebrar a regra.
Nenhuma ideia merece respeito
Porém mesmo que fosse encontrado algum critério para classificar uma ideia como digna de respeito e outra não, há algo que faltara responder: porque ideias mereceriam respeito?
Por agradar seus seguidores? Por evitar conflitos?
No primeiro caso isso demonstra algumas coisas:
- Considera-se os seguidores das ideias imaturos a ponto de não saberem a diferença entre criticar/avacalhar uma ideia e fazer o mesmo com eles
- Classifica-os como incapazes de mudar
- Valoriza-se mais agradar gente imatura que garantir liberdade de expressão
- Coloca-se ideias no mesmo nível de pessoas
No segundo caso demonstra-se covardia explicitamente. Abaixar a cabeça para algo injusto não é uma solução, é apenas cruzar os braços repetindo que está tudo bem enquanto a casa pega fogo.
Ideias não geram efeitos práticos (bons, neutros ou ruins) por si mesmas, precisam ser postas em prática - por pessoas. Não sentem nem pensam nada - quem faz isso são as pessoas. Não morrem e nem vivem - quem faz isso são as pessoas.
Ideias NÃO merecem respeito, pessoas merecem.
Apesar de ser bem óbvio é bom deixar explícito: ideias não pessoas, "atacar"ideias não é o mesmo que atacar aqueles que as seguem.
Portanto, não me venham com essa de "respeitar crenças", pois é uma furada. E que muito provavelmente nem vocês que defendem seguem.
Charlie "passou do limite"?
O jornal satirizou ideias e ícones culturais/religiosos com um humor pesado, isso é fato.
Porém há dois problemas:
- Ideias não merecem respeito
- Os personagens satirizados não foram reclamar
Não é preciso ler muitas vezes essa lista para perceber ando quero chegar: o jornal não fez mal às pessoas, apenas satirizou ideias e personagens culturais/religiosos, o que está completamente dentro da liberdade de expressão.
Voltando ao exemplo dos hindus, quantas pessoas aqui no Brasil dirão que passei do limite se eu matar um rato em público? E se eu quebrar um crucifixo em público?
Como disse acima, essas reclamações de "falta de respeito" são uma demonstração do "respeito self-service", que só vale quando afeta aqueles que defendem-no.
Ou como já dizia James Farrel "Faz o que eu digo mas não faças o que eu faço".
Conclusão
Essa história de "respeitar as crenças" dos outros não passa de uma máscara para hipocrisia utilizada que algumas pessoas usam para pagar de intelectuais enquanto fingem que se importam com os outros.
E o Charlie Hebdo não fez "libertinagem de expressão" com suas polêmicas charges, muito menos "fez por merecer" o terrível atentado que sofreu. Culpar a vítima é demonstrar de uma só vez covardia e desonestidade a níveis absurdos.
Menos choramingo, mais reflexão e principal, mais liberdade de expressão e respeito às pessoas - que ao contrário de ideias merecem respeito.
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